Lidere como uma loba

O que a natureza pode nos ensinar sobre liderança em condições extremas.

Lucas Prado
12 min readJan 7, 2021

Este artigo não é somente para mulheres, mas principalmente para os homens. Independente do gênero, se o título deste artigo lhe causou algum estranhamento ou desconforto, você precisa ler até o final. Confesso que quando pensei nele pela primeira vez eu também estranhei… Justamente por isso decidi escrevê-lo.

Já imaginou se o filme do Martin Scorsese se chamasse “A Loba de Wall Street”?

Desconstruir o senso comum não é uma tarefa fácil, principalmente em si mesmo! Mas como um #MachistaEmDesconstrução, busquei na mitologia, biologia, psicologia e na sociologia uma compreensão mais aguçada sobre liderança e nessa aventura acabei descobrindo um dos esportes mais arriscados do planeta: a corrida de trenós puxados por cães.

Há milênios os Chukchis, etnia nativa da Sibéria, utilizam os cães como meio de transporte. Desde então, o trenó puxado por cães veio evoluindo, tendo sido adotado por outros povos do ártico, como os indígenas Inuítes. Essa interação entre lobos e humanos tem muito a nos ensinar sobre liderança.

As mulheres tiveram um papel fundamental na domesticação dos lobos. (Foto: BBC)

Afinal, liderar sentado em uma cadeira confortável, no ar condicionado, em frente ao computador, pode até ser desafiador e estressante às vezes, mas imagine liderar a uma temperatura de -40ºC, exposto a perigos totalmente imprevisíveis, como tempestades, avalanches e ataques de animais selvagens. Bons líderes, sejam homens ou mulheres, são aqueles que conseguem liderar mesmo em condições adversas. Nisso, temos muito a aprender com as lobas!

Encontre o “macho alfa”

Talvez você já tenha visto esta imagem circulando nas redes sociais. Supostamente os lobos mais velhos e doentes vão na frente, os 5 mais fortes vão no meio e o verdadeiro líder vai atrás do bando, cuidando para que as fêmeas fiquem protegidas.

Fonte: AFP (agência independente de checagem de notícias)

Pode até parecer uma narrativa interessante, com um forte tendência para viralizar na internet, mas na verdade trata-se de uma enorme alcateia de 25 lobos caçando bisões no círculo ártico no norte do Canadá, liderada pela fêmea alfa. É isso mesmo que você ouviu, uma FÊMEA ALFA!

“Os lobos não são animais entre os quais existe um cuidado especial com animais mais velhos ou doentes, e não é uma conduta natural garantir que ninguém fique atrás. O certo é que esses animais precisam de pouca proteção, pois são um dos maiores grupos carnívoros terrestres no planeta”. — Eugenio Fernández Suárez

Então se você, por acaso, já compartilhou ou curtiu o post fake sobre o “lobo alfa”, ajude a divulgar este artigo para tentarmos corrigir essa estória mal contada.

Quando um erro vira um mito

Em 1970, o cientista americano Davis Mech, escreveu um livro chamado “The Wolf: The Ecology and Behavior of an Endangered Species”, que popularizou a ideia de lobos alfas e betas na dinâmica social de liderança das alcateias.

O problema é que os primeiros estudos de Mech foram baseados em lobos que viviam em zoológicos, onde haviam espécies trazidas de diversas regiões misturadas disputando dominância.

Quando se deu conta do equívoco ao observar o comportamento das alcateias em seu habitat natural, já era tarde demais. Para sua frustração, seus esforços em corrigir a desinformação e forçar a editora a retirar o termo “macho alfa” do seu primeiro livro foram em vão.

O biólogo Doug Smith, trabalha no Parque Nacional Yellowstone e vem observando os lobos na natureza há mais de 20 anos. Segundo ele, na alcateia existem duas hierarquias “uma de machos e uma de fêmeas”.

É sutil, mas em geral são as fêmeas que tomam a maior parte das decisões: onde ir, quando descansar, a rota a seguir, quando caçar. A personalidade das matriarcas peludas é que define a tônica de toda a alcateia.

Por falar em mitos…

Embora a sociedade romana não fosse um bom exemplo de igualdade de gênero, marcada por fortes traços de supremacia masculina, onde o papel da mulher se resumia à reprodução; nossos ancestrais viam a loba como um símbolo de força, bravura e liderança.

Diz a lenda que os gêmeos recém nascidos Rômulo e Remo, filhos do deus Marte e de Reia Sílvia, foram lançados a própria sorte no rio Timbre. Os dois acabaram sendo resgatados pela loba Luperca, que os amamentou e os abrigou, salvando-os da morte.

Os romanos se reconheciam como “filhos da loba”, inspirados no fundador da cidade e seu primeiro rei Rômulo. Por esse ângulo, a loba foi a matriarca de um dos maiores impérios da humanidade!

Corra loba corra

De Roma, vamos direto para o Alasca, onde acontece todos os anos a famosa corrida Iditarod Trail Sled Dog Race. A competição é um teste de resistência de 1.100 milhas em um dos ambientes mais extremos do planeta, onde a sensação térmica que pode chegar a 114 graus negativo. Não se trata apenas de superação, mas de sobrevivência!

A corrida começou no ano de 1973, idealizada por uma mulher, Dorothy G. Page, em homenagem aos cães que salvaram a população do remoto vilarejo de Nome de um grave surto de difteria, cruzando mais de 1 mil km de gelo para buscar medicamentos.

O trenó puxado por cães de longa distância é um dos únicos esportes em que homens e mulheres competem juntos em níveis de elite e o índice de vitórias é muito equilibrado entre os dois.

Para encarar esse desafio e se tornar um atleta profissional de corrida de trenó puxado por cães são necessários diferentes tipos de habilidades, não basta apenas força física, é preciso muita resistência, principalmente mental. As mulheres são boas nisso!

“O Everest é mais mortal, mas o Iditarod é mais difícil. No Everest, tudo que eu tinha com que me preocupar era comigo mesmo. Todas as decisões, seja para parar ou continuar, foram baseadas em mim. No Iditarod, todas as minhas decisões são baseadas na segurança dos meus cães.” — Cindy Abbott

A primeira mulher a vencer a competição foi Libby Riddles em 1985, aos 29 anos de idade. Em uma entrevista a campeã revela que sua estratégia foi fazer sempre o melhor que ela e sua equipe pudessem fazer e se manter sempre ocupada o bastante para não desperdiçar energia com medo.

Outra lenda do esporte é DeeDee Jonrowe, com 64 anos, considerada a “Dama de Ferro” de Iditarod, já percorreu mais de 32.000 milhas, o suficiente para dar a volta ao mundo 1,25 vezes. Em suas 36 corridas, terminou em segundo lugar duas vezes e ficou entre os 10 primeiros colocados 16 vezes. Em julho de 2002, Jonrowe foi diagnosticado com câncer de mama. Três semanas após terminar a quimioterapia , ela competiu no Iditarod, ficando na 18ª colocação.

“Ela é provavelmente a pessoa mais durona que conheço por aí. E além de ser uma pessoa durona, ela sempre foi uma pessoa muito feliz e otimista na trilha também, o que é divertido de se estar por perto.”

Isso mostra a força de espírito dessas mulheres! Elas não estão ali para provar nada a ninguém, as suas conquistas falam por elas. O simples fato de conseguir treinar uma boa equipe de cães e cruzar a linha de chegada já é um feito extraordinário para qualquer ser humano.

“Eu sei que há muitos fãs que realmente gostariam de ver uma mulher ganhar, que seja eu, mas quero ganhar porque estes são os cães mais legais e corajosos que existem, não porque eu seja uma mulher.” — Aliy Zirkle

Lendo diversos relatos e histórias sobre as campeãs da “Última Grande Corrida da Terra” pude aprender muito. Daria até pra escrever um livro! Porém, tentarei ser breve e focar nos seis pontos que considero mais importantes para uma boa liderança:

Segura firme no trenó que lá vamos nós!

1. Abrir caminhos e criar oportunidades

Como vimos no início deste artigo, geralmente os lobos caminham em fila com a “loba alfa” a frente abrindo caminho. Mover-se dessa maneira pela neve economiza energia da alcateia.

Para mim esta imagem acima diz mais do que mil palavras sobre liderança! Um líder não deve apenas dizer para onde ir, mas ser capaz de criar caminhos quando todos parecem estar perdidos e não há nenhuma trilha pronta.

2. Aprender uns com os outros

Em geral os cães aprendem melhor com os seres humanos do que entre si. No caso dos lobos é o contrário, eles tem uma capacidade incrível de aprender uns com os outros, por uma questão de sobrevivência.

Na hora certa todos precisam saber agir em conjunto. Se um líder morre, todos na matilha estão prontos para substituí-lo. A grande responsável por essa troca de conhecimento dentro da alcateia é a loba matriarca!

Incentivar o compartilhamento de informações e experiências é uma forma de melhorar o desempenho relacional do seu time. Afinal, conhecimento é a única riqueza que quanto mais compartilhamos, mais se valoriza.

3. Para se arriscar é preciso coragem e confiança

Um dos segredos da vitória nas corridas de trenós é se arriscar. Seguir um pouco mais, quando deveria descansar ou enfrentar uma tempestade de neve quando deveria se abrigar. Se arriscar é ir contra as probabilidades! Tomar decisões que outras pessoas não tomariam…

A recordista Susan Butcher, sabe bem o que é isso. Ela e seu cão Granite foram os únicos a vencer 4 vezes consecutivas a corrida de Iditarod. Granite era o menor cão de sua ninhada e tinha dores nas articulações dos joelhos. Todos diziam que ele nunca teria o tamanho ou força para ser um cão de trenó, mas ela confiou no seu potencial e o treinou para ser um campeão.

Durante seu primeiro Iditarod juntos, Granite corajosamente salvou a equipe de ser atacada por um alce. Alces matam mais pessoas no Alasca por ano do que ursos! Ele ficou gravemente ferido e a equipe foi forçada a se retirar da corrida naquele ano.

“É importante ter um vínculo estreito com os cães. Este esporte tem tudo a ver com a confiança entre o cão e o ser humano, e os melhores pilotos são aqueles que têm essa conexão especial. ” — Lily Stewart

Enquanto treinava para outra tentativa de Iditarod, Granite ficou gravemente doente. O veterinário disse que se ele se recuperasse nunca mais correria, porque a doença havia prejudicado seu coração. Susan o ajudou a recuperar a saúde e, no ano seguinte, ele levou a sua equipe à vitória.

É preciso muita coragem para entrar nessa água…

Sua capacidade de se arriscar é diretamente proporcional a relação de confiança que você nutre com seu time. Quanto mais confiança, mais coragem e quanto mais coragem, maior a sua margem de riscos.

4. Proteja seu time com unhas e dentes

Lobas não são dóceis, não são frágeis, não são submissas e protegem sua alcateia com a própria vida se for preciso. A capacidade de proteger os demais é um dos fatores determinantes do tamanho das alcateias e em geral quem faz a guarda são as lobas. Proteção inspira confiança!

Vale a pena conhecer a impressionante história da “fêmea alfa” Riley e como ela conseguiu sobreviver com uma grave fratura em uma das patas, liderando uma alcateia de 17 lobos por mais de um ano e enfrentando diversos ataques de alcateias rivais que disputavam seu território. Um verdadeiro Game of Thrones da vida selvagem!!!

“Quando a neve cai e os ventos brancos sopram, o lobo solitário morre, mas a matilha sobrevive!”

A propósito, a série baseada na obra de George R.R. Martin é um ótimo exemplo de liderança feminina.

5. Ame o que faz e divirta-se

Nas competições de trenós puxados por cães o prêmio em dinheiro é mínimo. A maioria dos pilotos concorda que o fazem por razões simples: amor pelo esporte e amor pelos animais. Mas não importa o quanto você ame o que faz, as vezes é cansativo, nessas horas um pouco de alegria pode ser o fundamental para não desistir e seguir em frente.

Para os animais puxar trenós é tecnicamente, brincar. Então correr é como uma recompensa para eles, porque é prazeroso. Segundo o especialista Raymond Coppinger, agir como uma equipe fortalece os laços entre cães e humanos, além de ajudar a reduzir a agressão entre os animais.

Uma das estrelas do Iditarod é a cadela Happy, uma mistura de “cão de caça” com “cão de trenó” meio desajeitada. Apesar de não ter raça definida, ela tem habilidades muito especiais que deram origem ao seu nome. Não importa o quanto corra, ela sempre está pronta para correr novamente, parece nunca ficar sem energia. Enquanto os outros cães estão exaustos,ela está lá fazendo sua dancinha feliz.

Ela realmente ama o que faz e isso é contagiante para todos a sua volta! Essa é sua função na equipe: ser feliz. Embora ela corra na última fileira (wheel dogs), ela consegue liderar todo o time com sua alegria, lembrando a todos o propósito de estarem ali.

6. Ilumine os talentos do seu time e não a si mesmo

Não adianta ter o melhor trenó do mundo se não tiver bons cães para puxá-lo. O primeiro Iditarod foi ganho em 20 dias, hoje em dia pode ser feito em 9 dias. Isso não se deve aos equipamentos de alta tecnologia, que, aliás, evoluíram muito pouco ao longo dos séculos.

“Cada cão é diferente e os melhores condutores realmente conhecem cada um individualmente para construir uma relação de confiança e lealdade.” — Katie Orlinsky

O segredo está na preparação dos cães! Alimentação e treinamento intensivo ao longo de todo o ano são parte do processo. Este tem sido o fator decisivo do ganho de performance na corrida de trenós puxados por cães; não apenas do ponto de vista físico dos animais, mas também pelo fortalecimento dos vínculos entre os condutores e seus cães.

As lobas no comando

Apesar da ciência ter avançado bastante na compreensão do comportamento do canis lupus e das empresas com mulheres na liderança terem 21% mais chances de atingir lucros acima da média, o mito do “macho alfa” continua vivo, intrinsecamente associado a uma cultura machista, onde um a cada três brasileiros não gosta de ter uma chefe mulher.

“Mulheres líderes em organizações têm um desafio para além de suas funções: educar o ambiente em que atuam contra o machismo.” — Sofia Esteves

Em 2020 tivemos um recorde histórico de CEOs mulheres na lista Fortune 500, chegando a 8% das empresas lideradas por executivas. Em todo o mundo, só 4,4% das vagas de CEO são ocupadas por mulheres, segundo estudo realizado pela Deloitte. No Brasil, esse percentual é de apenas 0,8%.

De acordo com um estudo da McKinsey, o número de mulheres no comando das empresas aumentou de 4% nos últimos 5 anos. Ainda assim, a diferença salarial entre homens e mulheres CEOs é de 42%.

Na política o Brasil ocupa a 140º lugar no ranking de representatividade feminina no Parlamento, numa lista de 193 países pesquisados pela ONU. Nas eleições municipais de 2020 somente 1 a cada 10 candidaturas a prefeito eram de mulheres e tivemos apenas uma mulher eleita em todas as capitais do país.

Transformamos tudo a nossa volta

Um fato incrível que descobri sobre as lobos é o impacto que eles, assim como outros grandes predadores do topo da cadeia alimentar, podem causar no ecossistema em que vivem.

Devido a caça predatória, os lobos foram extintos em algumas regiões dos Estados Unidos. Com o passar dos anos, os ambientalistas começaram a observar o assoreamento dos rios, uma vez que os cervos e alces puderam pastar livremente na margem dos rios, degradando a mata ciliar.

Quando os lobos começaram a ser reinseridos no território em 1995, o que se pôde perceber foi que presença deles mudou os rios. A vegetação foi capaz de se restabelecer e crescer novamente, aumentando assim a biodiversidade ao fornecer alimento e abrigo para uma grande variedade de plantas e animais.

Relatórios da National Geographic apontam que este pode ser um dos conceitos de conservação mais importantes que surgiram das ciências naturais no último meio século.

Isso mostra que assim como os lobos, nós também transformamos o ambiente em que vivemos, com nossas atitudes e comportamentos. Portanto, não importa o clima ou os perigos que você terá que enfrentar, a cada caminho novo que você abrir, a cada risco que assumir, cada conhecimento que compartilhar, cada momento de alegria que desfrutar com seu time, cada batalha que vencer e cada talento que iluminar, você estará liderando como uma loba e isso pode mudar tudo a sua volta.

*Este artigo é uma homenagem à Andreza (minha esposa), Lúcia (minha mãe), Carolina e Mariana (minhas irmãs), Alice (minha afilhada de 6 meses de idade), Jurubeba e Mari (minhas duas cadelas resgatadas), todas elas inspiradoras com o verdadeiro espírito das lobas!

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Lucas Prado

Servidor publico, escritor, cientista de dados, UX designer, growth hacker, Embaixador de Inovação Cívica da OKBR e co-fundador da Meryt.